A dura arte de ser grato

Foto: Juliana França

Foto: Juliana França

Recentemente a palavra gratidão entrou na moda. No início eu confesso que até achei bacana, mas depois me pareceu algo banal, ‘gratidão’ virou o novo ‘eu te amo’. Fácil de falar, difícil de colocar em prática.

Tenho percebido como temos dificuldade em sermos gratos. Estamos sempre buscamos algo que ainda não temos, na esperança de que esse algo nos traga a satisfação plena, tão desejada. A questão é que sempre que atingimos um objetivo, vamos em busca de outro. É a falta, o famoso combustível da neurose, como já dizia Freud. Nada está bom, sempre precisamos de mais. Algo que também nos é inserido culturalmente, pela sociedade de consumo e nosso sistema capitalista. Afinal, o mundo precisa girar e, para isso, precisamos produzir e consumir.

Segunda-feira foi um dia duro. Uma tristeza tomou conta de mim, somada à saudade de estar longe de casa, do meu idioma, do meu país. Não é fácil ser imigrante. É aquela sensação de estar com um sapato que não te pertence. O pé tenta se ajustar e ao mesmo tempo se atrapalha nos passos. Mas caminha. Às vezes dói, faz bolha, como num sapato novo, que ainda não se ajustou ao seu caminhar. E essa sensação aparece não só quando se muda de cidade ou país. Ela surge toda vez que sofremos alguma mudança na vida. Não é fácil mudar, sair da sua zona de conforto, se adaptar ao novo. E segunda-feira foi um desses dias de bolha no pé, onde eu desejei fortemente calçar os meus sapatos antigos, já confortáveis e adaptados aos meus passos.

E onde entra a gratidão nisso tudo? Pois, voltando pra casa no fim do dia, falando com uma amiga por mensagens enquanto estava no metrô, percebia que ela, com a vida que eu desejava pra mim naquele exato segundo, também reclamava. Desejava mais isso e aquilo, como se ela já não fizesse e tivesse tanto. E foi falando pra ela sobre a gratidão e o tempo necessário para que as coisas amadurecessem, que me dei conta de que aquele discurso servia também para mim.

Temos sempre tanto, mas nunca olhamos para o que conquistamos. Nossos parâmetros e padrões sempre são externos. É aquela velha história de olhar a grama do vizinho, sabe? A gente se esquece de olhar o quanto caminhamos para chegarmos onde estamos. O quanto lutamos para conquistar qualquer coisa que seja. A vida do outro sempre parece mais interessante, os objetivos dos outros sempre parecem ser os mais certos a se seguir. E nessa toada vamos educando nossos filhos e a nós mesmos a buscarmos sempre mais e mais e mais. E não nos damos conta da preciosidade do que temos hoje. Não celebramos as nossas pequenas conquistas, a nossa coragem, a dádiva de mais um dia de vida.

Uma vez Lama Michel disse que rico não é quem tem muito, mas sim quem é satisfeito com o que tem. Isso me marcou profundamente. Ser rico é ser grato, é ser consciente dos nossos passos, das nossas conquistas, da nossa existência. E isso nada mais é do que viver o presente. É sentir o sabor da comida que nos alimenta, a presença de quem está ao nosso lado, o vento que sopra o nosso rosto, mostrando que temos vida.

Ser grato é perceber que temos aquilo que precisamos para o agora e que o futuro é apenas uma conseqüência do momento presente. É ser aberto à vida, aceitando os desafios que ela nos traz sem rejeição, mas com coragem para aprender o que quer que seja que tenhamos que aprender. E foi olhando ao redor que eu parei de desejar o que não tinha e me dei conta da preciosidade que é a vida. Percebi que mesmo não estando com os sapatos mais confortáveis, eu tinha a oportunidade de descobrir uma estrada completamente nova, com tempo para meus pés se ajustarem naquele novo sapato. Eu não precisava correr e nem voltar atrás em busca dos sapatos antigos. Bastava olhar ao redor e ser grata. Grata por ter conseguido chegar até aqui, gastando inúmeros sapatos e trocando de pares vezes outras. Com calos nos pés e dedos machucados, porém fortes. Podendo andar, adiante e firme. E foi, então, que percebi que estava tudo bem, que não havia razão para sofrer ou reclamar. Eu tinha tudo o que precisava para viver aquele momento, não precisava de mais nada. Fui tomada por uma gratidão imensa, afinal, estava tudo em seu devido lugar. E foi aí que me senti a pessoa mais rica do universo.

A generosidade de aprender a receber

 

Ratnasambhava

Ratnasambhava – o Buda da Generosidade

Quando falamos em generosidade, imediatamente associamos ao ato de dar algo a alguém. Aprendemos que ser generoso requer um certo desapego material, pois precisamos doar a quem precisa. Durante anos vivi com essa noção de generosidade e sempre que via alguém necessitado diante de mim, imediatamente me sentia na obrigação de ser generosa por sentir pena, por imaginar que deveria dividir, já que eu possuía tanto.

Sempre achei muito bonito isso de compartilhar com os outros algo que é meu. Ainda via a generosidade apenas como uma via de mão única, aquela velha história de partilhar o pão com os irmãos e alimentar a quem tem fome. O que eu não percebia, então, era que essa visão de generosidade ainda era muito arraigada de egoísmo e até mesmo de uma certa soberba. Nessa visão, a generosidade beira a arrogância: “Vou dar porque tenho muito e ele tem tão pouco, tadinho.” Olhando por essa perspectiva, colocamos o outro num lugar menor e nos colocamos num lugar de salvador, aquele que pode tudo. É algo bem sutil, mas que faz toda a diferença.

No budismo tibetano, o Buda que representa a generosidade é Ratnasambhava. Ele está sentado com uma das mãos em postura meditativa e a outra fazendo o mudra da generosidade, como na foto acima. Sua mão aberta simboliza a doação, mas também a receptividade, e é aí que reside a chave da verdadeira generosidade, que é, na sua essência, o antídoto contra a arrogância.

Quando nos sentimos auto-suficientes e superiores, não somos capazes de receber verdadeiramente. Podemos até doar, mas nossa doação será baseada na crença de que temos muito e que o outro tem pouco e nada a nos oferecer, portanto precisamos ajudá-los. Nesse caso, a palavra ‘pena’ cumpre um papel muito perigoso para o ato generoso, pois quando temos pena de alguém, imediatamente nos sentimos numa posição superior e daí não é a nossa generosidade que está atuando e sim a nossa arrogância.

Ser verdadeiramente generoso é estar completamente aberto à vida. É receber sem preconceitos, entendendo as nossas limitações. Todos precisamos de algo, afinal, somos seres que nos relacionamos. Fomos criados para dar (às vezes, nem isso!), mas quase nunca para receber. Já parou para perceber como é difícil receber um elogio? Sempre estamos em busca de um reconhecimento, mas sempre quando recebemos algum, sentimos que é pouco ou fazemos pouco caso. Outro dia me peguei fazendo isso quando elogiaram o meu cabelo. Imediatamente soltei: “Imagina, você está exagerando. São seus olhos.” Eu também já escutei muito de amigos (e até de mim mesma) a seguinte frase: “Adoro ajudar, mas odeio pedir ajuda.” Ora, o que não é isso senão arrogância? Arrogância também é não admitir que somos seres limitados, que também caímos e que precisamos de uma mãozinha de vez em quando. Não é errado demonstrarmos fraqueza, tristeza e qualquer tipo de necessidade. Mas como não queremos que o outro sinta ‘pena’ de nós, a gente se faz de forte e se obriga a ser de ferro. Que furada!

Meus últimos meses foram de muitos aprendizados nesse sentido. Me descobri uma pessoa extremamente arrogante. Sempre estava ali pronta para ajudar quem quisesse e precisasse, tinha uma incrível dificuldade em dizer não. Quando então entendi que aquela minha generosidade era uma fraude. Afinal, eu não sabia receber. Não entendia as minhas limitações, até mesmo a de dizer não. E foi aí que eu percebi a minha humanidade. Pois eu também sofro, também sou fraca, mas também estou rodeada de pessoas incríveis que se importam comigo, me amam e querem me ajudar de alguma forma. E daí me veio a clareza de que a generosidade se torna verdadeiramente completa quando olhamos para o mundo de forma equânime e nos libertamos da nossa arrogância, para receber com gratidão tudo o que a vida nos oferece, sendo capazes de retribuir com amor a todos e não somente aquele que julgamos que precisam, pois o fluxo da generosidade é bi-direcional: todos que dão, recebem algo em troca, de alguma forma. Precisamos apenas ter a clareza para perceber e receber isso.